Mais um carnaval se foi e, passada a ressaca do reinado de Momo, cabe a nós, que tanto amamos o samba, a árdua e tortuosa tarefa de analisar a festa, identificar aspectos positivos e negativos, apontar erros e acertos, procurando, com isso, extrair algumas ilações e ao fim trazer uma crítica construtiva que sirva de paradigma para novos carnavais, pois, afinal, trata-se do maior espetáculo popular do mundo.
É exatamente por considerar as dimensões e a importância desse espetáculo, que se notabiliza por expressar e divulgar a maior manifestação cultural do Brasil e, acima de tudo, em respeito aos milhões de brasileiros e estrangeiros que vivenciam intensamente as emoções desta magnífica festa, é que nos dispusemos a enfrentar tão desafiante e instigante tema.
Neste ponto, ainda sob a linha introdutória, ocorre-nos a lembrança de um dos maiores sambistas brasileiros, o inesquecível Zé Kéti, cuja poesia, imortalizada nos versos do samba “A Voz do Morro” (Eu sou o samba / A voz do morro sou eu mesmo sim senhor / Quero mostrar ao mundo que tenho valor
Eu sou o rei do terreiro / Eu sou o samba / Sou natural daqui do Rio de Janeiro / Sou eu quem levo a alegria / Para milhões de corações brasileiros / Salve o samba, queremos samba / Quem está pedindo é a voz do povo de um país / Salve o samba, queremos samba / Essa melodia de um Brasil feliz.),retrata a magnitude do samba para o imaginário brasileiro.
Há então que se indagar: O que ocorreu de positivo no desfile das Escolas de Samba? O que aconteceu de negativo? Olhando pelo prisma cultural e, seguindo a vertente dos grandes sambistas do País,quero crer que algo precisa ser feito imediatamente, pois o samba está sendo substituído pelas alegorias e adereços, pelos Led`s, pelo silicone, pela mediocridade, pela vaidade pessoal de alienígenas do mundo do samba.
Estamos presenciando, na quadra atual, situações bem curiosas em que algumas agremiações carnavalescas que estão sendo “administradas” por pessoas completamente estranhas ao mundo do samba e, a contra gosto dessas comunidades, estão com suas gestões sob questionamento, dificultando sobremaneira a realização de um trabalho à altura que o espetáculo requer.
Nesse passo ,nos parece salutar o movimento que está sendo deflagrado na Portela e Mangueira, para as próximas eleições e que pode vir a ser o início da grande revolução do samba, ou seja, o resgate do samba pelo sambista, o que também é almejado por outras escolas..
Existem agremiações que são conhecidas e, identificadas apenas pelo nome do seu “carnavalesco”, que se coloca como “Deus Supremo” daquela comunidade e, inadmite qualquer concorrência de notoriedade. Nesse contexto, não pode haver um bom samba que possa ofuscar o seu enredo e a sua “criação”; não há espaço para o saudoso passista ou ritmista, que possa ser premiado ou ovacionado, ou que possa colocar em risco o seu reinado isolado,que tire as atenções das suas mágicas e ilusionismos (cabeças caindo; comissões de frente em que pessoas desaparecem na Sapucaí-RJ e ,aparecem no Anhembi-SP, Deuses e Super heróis com seus martelos voadores, mágicos engolidores de espadas, Astronautas vindos da NASA para vôos espaciais durante o desfile, enfim, uma grande,mas, monótona obra teatral), o que nada tem haver com o carnaval e, com o desfile das escolas de samba.
Esse ano surgiu um fato novo, uma “enorme surpresa”, uma tradicional escola resolveu colocar 02 baterias no desfile. No momento da apresentação, verificou-se que, em verdade, foi colocada uma bateria dividida por um carro, em que, a metade dos ritmistas ficava na frente e, a outra metade atrás, sendo orientados por sinalizadores e, vários diretores de bateria, que em determinado momento melódico do samba, comandavam uma pausa para os componentes que estavam na frente tocando e, no compasso seguinte, sob um novo sinal, fazia-se a retomava com os que estavam atrás do carro em descanso, que passavam a executar o ritmo. Ou seja, uma única bateria, dividida por um carro e, com roupas diferentes. Resultado, tal inovação causou uma enorme confusão na escola, pois, os outros quesitos não foram observados, ocasionando o estouro do tempo em 06 minutos, comprometendo, cronometragem, evolução e harmonia e todo o moral da escola, ou seja, a escola foi penalizada. Ora, não seria mais coerente, investir-se no que já existe com competência, dando melhores condições aos diretores de bateria, investindo em novos instrumentos, qualificando e selecionando melhor os seus integrantes, melhorando a harmonia, gastando de forma inteligente a subvenção recebida, do que criar a falsa expectativa de 02 baterias, com o simples aumento significativo do número de componentes? No carnaval não há tempo para arrependimentos; tocou o sinal, dada a largada, não dá mais para retroceder ou abortar a idéia. Ademais, não há mais espaço para amadores ou aventuras, até porque, uma boa parcela dos profissionais do carnaval são muito bem remunerados.
Não será nenhuma surpresa, se no ano que vem, surgirem outras agremiações, com ideias mirabolantes de inovar o desfile, tais como: trazer 03 comissões de frente (uma no início, outra no meio e uma finalizando a escola); ou, quem sabe, 04 alas de baianas ou, 06 primeiros casais de mestre sala e porta bandeiras, além dos segundos e terceiros já existentes; Pode surgir, inclusive, a idéia de se trazer uma escola inteira, só de bateria, como uma ala única, trazendo 10 ou 12 carros de som como alegoria, com vários primeiros cantores, onde cada uma dessas baterias, possa tocar um pouquinho durante o desfile, o que amigos, pode até agradar a alguns, mas, está comprometendo a tradição das escolas de samba.
Outro aspecto digno de relato diz respeito ao funcionamento e performance dos chamados puxadores de samba. Parece que, nos últimos tempos, virou moda trazer vários puxadores ou cantores nas escolas. Mais uma invenção infeliz, pois, desde que o samba existe, escolhe-se uma voz que marca a característica da escola e, colocam-se os cantores de apoio, que ficam com o volume de seus microfones abaixo da voz 1, ou seja, só de apoio ao cantor principal da escola. Colocar 03, 04 ou várias vozes como primeira voz, já é uma contradição, ainda mais, quando as aludidas vozes não cantam no mesmo tom, o que sacrifica os cantores que não conseguem atingir as notas (região) daquele que canta no tom mais auto e, principalmente, aos que os escutam, pois, fica nítido o canto semi-tonado, isso, sem contar a disputa de vaidade pessoal que normalmente acontece. O melhor seria escolher uma voz como referência da escola e, os demais como apoio.
É evidente que o samba e a escola de samba não necessitam disso para ganhar brilho ou mais prestígio. Basta fazer o que já existe, com competência, conhecimento de causa, zelo e comprometimento, o que anda escasso no momento. Quero deixar claro, aqui, que tenho o maior respeito por todas as Escolas de Samba, mas, não posso me calar, em relação às atitudes de algumas supostas inovações que depõem contra o ritual do samba e,assim, colocam em risco a qualidade e o brilho do espetáculo,e,por consequência,o próprio desempenho dessas agremiações, justificando-se, portanto, as observações e opiniões aqui alinhadas.
Ouço, com frequência, na mídia e no mundo do samba, que está faltando também, mais seriedade e cuidado com a escolha dos enredos patrocinados, pois nem sempre o dinheiro consegue suprir a tudo que é imprescindível para um bom desfile; Faz-se necessário também, uma melhor avaliação na escolha dos samba enredos, prestigiando a qualidade (letra e melodia) e, não a quantidade de gente que se coloca na quadra (torcida, galhardetes, camisetas, fogos de artifício, etc...) e, o investimento que normalmente se coloca na disputa de um samba enredo (agentes patrocinadores e compositores).
É de toda pertinência, também, o questionamento acerca do porquê de se manter as alas dos compositores das escolas, se hoje, quase todas as agremiações estão com suas alas abertas? Atualmente, qualquer um pode, na ocasião da escolha do enredo e da entrega da sinopse, se habilitar a fazer samba para as diversas escolas, mesmo não sendo da ala de compositores, bastando pagar a inscrição. Assim sendo, ou se fecha as diversas alas de compositores das agremiações (como era antigamente, que tinha até período de estágio), impedindo que pessoas de fora (estranhas) participem do certame de escolha de samba enredo, mantendo a tradição das respectivas agremiações através de seus poetas exclusivos ou, então, salvo melhor juízo, o melhor, é acabar de vez com a ala de compositores, fazendo da mesma uma ala comercial, como as demais, onde a roupa pode ser também vendida para qualquer um, assim como se faz com as sinopses.
Há que se registrar que ainda existem excelentes sambas nas disputas das escolas, mas, infelizmente, na maioria das vezes, são descartados durante o certame. Há quem afirme que essas eliminações sumárias e inexplicáveis, são feitas para não ameaçarem supostos acordos, promessas e, aos tão propalados escritórios, o que, por certo, vem maculando e banalizando a arte de se fazer samba enredo. Existe um velho ditado (que já ouvi, mas não sei quem é o autor) que diz: “o difícil é fazer o fácil”.
Aliás, o próprio Martinho da Vila, um dos compositores que assina o belíssimo samba campeão da Vila Isabel de 2013 junto com outros parceiros, já vem há muito manifestando sua contrariedade com o atual sistema de disputas, chegando a afirmar, em recente entrevista ao jornal O Dia ,que “Os concursos não acontecem mais por amor às agremiações. Viraram uma espécie de campanha política. Só entra quem dá dinheiro, leva torcida, distribui camisas, ingressos. Enfim, virou comércio” . Tunico da Vila, filho de Martinho e parceiro no samba campeão, na mesma matéria acrescenta: “Esse processo virou um show. Infelizmente, quem perde é o mundo do samba. O sujeito pode ter uma grande composição, mas, se não tiver recursos, não entra.”
Por derradeiro, um comentário sobre a transmissão do desfile, exercido por uma única emissora de TV, que, não se sabe bem porque (economia, divulgação de seus próprios quadros etc.) insiste em colocar apresentadores e comentaristas estranhos ao mundo do samba e, portanto, com notório desconhecimento do assunto que se propõem a relatar e comentar (com algumas e escassas exceções), o evidente e presente repúdio, pois o telespectador já sabe e já vem se manifestando ha muito tempo a respeito.
Parabéns Vila Isabel pela merecida vitória; parabéns a comunidade da Portela pelo belo samba e, pelo brilhante e emocionante espetáculo; parabéns ao Império da Tijuca pelo excelente desfile e, a ascensão ao grupo especial, Parabéns ao sambista das demais agremiações (Salgueiro, Beija Flor, Grande Rio, Imperatriz, etc...) pela garra, alegria e, pelo amor a bandeira de suas escolas. O samba agradece e, está acordando.
Sarava.
Flavio Oliveira do Salgueiro. – 17 fevereiro de 2013 (músico, cantor, compositor, sambista)